terça-feira, 16 de agosto de 2011

Obediência cega ao Sensei?

Conversando com muitos praticantes e professores, tenho observado um tipo de pensamento sobre como comportar-se em relação ao seu Sensei. Minha preocupação em relação a esse assunto é grande, pois estou vendo em muitos lugares uma espécie de ressurreição da relação hierárquica europeia da Era Medieval. Sim, não enxergo a figura do mestre oriental projetada nos professores de arte marcial aqui no Brasil, enxergo a figura do aristocrata europeu que usa seu “poder divino” para abusar dos “reles plebeus” (no caso, os alunos ou instrutores menos graduados).

Mais uma vez, gostaria de incentivar você, leitor, a conferir as ideias que embasam esta coluna na literatura, principalmente os livros “O Crisântemo e a Espada: padrões da cultura japonesa” da antropóloga Ruth Benedict e “Segredos dos Samurais: as artes marciais do Japão Feudal” dos historiadores Oscar Ratti e Adele Westbrook. Nossa reflexão precisa partir de ideias que realmente representam os ensinamentos da cultura da Ásia (especialmente do Japão) e se contrapor ao pensamento de senso comum propagado verbalmente dentro das academias e federações, ou não evoluiremos em nossa concepção a fim de desenvolvermos nossa arte.
Em primeiro lugar, gostaria de fazer uma colocação sobre a hierarquia e o On. Na cultura japonesa, a ideia de uma hierarquia rígida está muito presente e é a base organizacional de todo o sistema social desde o período feudal. Essa hierarquia coloca cada pessoa no seu “devido lugar” e é mantida por ideias sobre as dívidas morais (On) que se apresentam em cada um dos círculos sociais da vida. De forma generalizada, há uma dívida moral suprema em relação ao Imperador e dívidas morais (com diversas classificações que não abordaremos aqui) menores em relação aos pais, parentes, irmãos mais velhos, patrões e professores, e outros. Há uma ideia de aceitar uma dívida moral, o On, quando se recebe algo de alguma pessoa em cada um desses círculos sociais.
Nesse sentido, vai se tornando clara para nós aquela ideia de que “deveremos ao Sensei para sempre” como nos lembrou num curso interessante Pedro Oshiro-sensei (1) realizado em fevereiro aqui em Porto Alegre. E continuou o mestre: “O Sensei nos ensinou tudo, desde como vestir o karate-gi e fazer o primeiro gedan barai”. A cada dia de treino estamos acumulando um pouco de On a nosso Sensei, e de acordo com a filosofia tradicional do Japão, nunca somos capazes de devolver em igual medida a contribuição do Sensei para nossa vida (assim como não o conseguimos em relação aos nossos pais).
No Japão as pessoas evitam oferecer as gentilezas que o ocidental está acostumado a oferecer como parte de sua etiqueta, pois estaria constrangendo aquele que recebe a benfeitoria e obrigando-o a contrair On. No caso da prática da arte marcial, cada um de nós está contraindo On por iniciativa própria e aceitando esta dívida moral. Temos visto que a relação comercial (o fato de pagarmos mensalidades ao professor, dando uma contrapartida financeira pelo que é ensinado) tem dificultado a construção dessa relação de valores. Para nós, que conhecemos este princípio, temos de entender que mesmo assim, como o pensamento japonês afirma, “nunca seremos capazes de pagar uma dívida equivalente ao benefício que recebemos”.
Aqui me parece estar o cerne do nosso problema. Encontrei recentemente numa revista de psicologia um artigo que afirmava que, após avaliações psicológicas, os praticantes brasileiros de artes marciais demonstravam uma subserviência incomum aos seus professores. Além deste comportamento opressor da parte dos “mestres”, que comecei a relatar aqui, há um comodismo por parte dos praticantes, dos alunos, por acharem que “isto faz parte da hierarquia das artes marciais japonesas”. NEGATIVO, PEQUENO GAFANHOTO!
A antropóloga Ruth Benedict é muito clara em sua análise num dos trechos centrais de “O Crisântemos e a Espada”, e nos esclarece esse ponto com a ideia de que os estudantes prestam total obediência e lealdade ao professor, estão honrando assim a dívida que contraíram do Sensei. Por sua vez, o professor age com muita cordialidade e centramento, honrando assim a dedicação de seus estudantes ou subordinados (no caso das empresas). E continua: “há uma exceção, quando o professor ou chefe age com rispidez ou violência, ou outro comportamento amoral que denigra a integridade (física, moral ou psicológica) de seus subordinados, estes estão livres de seu compromisso e, culturalmente, autorizados à vingança para honrar a dívida que tem com o próprio nome”. Ou seja, os estudantes aceitam contrair On com o professor, e lhe devem obediência e devem esforçar-se nos treinamentos para honrar o conhecimento que estão recebendo do Sensei. Esta obediência, porém, dura até serem maltratados pelo professor. Na cultura japonesa a dívida com o próprio nome (que envolve a ideia de honra à família e aos ancestrais) é uma das mais pesadas que recai sobre um indivíduo e impulsionou inúmeros artistas marciais, desde o período feudal, a buscarem vingar-se de seus mestres.
Obviamente nossa realidade não é a mesma do Japão, mas devemos estar atentos e ter amor próprio. A atitude descortês de muitos professores não é apropriada a um professor de Karate-do, é preciso haver um equilíbrio entre autoridade e cortesia constantes. Muitas vezes confundimos a atitude de homens que acham que o Dojo é uma extensão de suas experiências no exército ou assistindo a filmes de guerreiros espartanos ou da idade média com o comportamento adequado ao “Guerreiro Samurai”.
Karate-do deve ser alicerçado em respeito, e ele começa, sem sombra de dúvida, no exemplo dado pelo Sensei o tempo todo, respeito é algo que precisa transparecer, emanar das atitudes do professor. Fique alerta, o caráter, que está gravado no Dojo Kun, é um elemento básico que não deve estar só num quadro da parede, deve estar nas pessoas. Observe seu professor e seus colegas e faça uma avaliação. Como nos lembra a antropóloga americana Angeles Arrien, o Guerreiro é aquele cujas atitudes estão o tempo todo alinhadas com as palavras e valores. Se o quadro e o discurso de seu Sensei dizem uma coisa e as atitudes dele outra, considere procurar um Dojo de Karate-do de verdade…
Osu!!!
Tiago Oviedo Frosi
Shotokan-ryu Karatedo Shodan (CBK/WKF)
Estudante de Mestrado em Ciências do Movimento Humano – UFRGS
 
Texto original no site: http://pintokaratedojo.wordpress.com/2011/05/08/obediencia-sega-ao-sensei/

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